A necessária reflexão sobre a relativização do lançamento por homologação em tempos de SPED

O Sistema Tributário Brasileiro, enquanto conjunto das regras destinadas a regular a instituição, a cobrança, a arrecadação e a partilha de tributos, tem como um dos seus aspectos fundamentais a definição e a formalização da obrigação tributária, vale dizer, o vínculo jurídico entre Fisco e contribuinte, por força do qual aquele pode exigir o pagamento de tributo deste, dando origem ao crédito tributário (art. 139, do CTN).

Quando esta obrigação não é cumprida pelo contribuinte, surge a necessidade de constituição do crédito tributário, o que ocorre por meio do lançamento, ato administrativo que tem por finalidade, pois, declarar o nascimento do vínculo obrigacional entre Fisco e contribuinte. Assim, visa identificar o fato gerador, determinar o valor a ser pago e identificar o sujeito passivo, além da penalidade cabível (art. 142, do CTN).

Como se sabe, existem três modalidades de lançamento: de ofício, por declaração e por homologação. O primeiro é feito por iniciativa da autoridade administrativa; já o segundo, é feito em face de declaração/formulário preenchido pelo contribuinte ou por terceiro (art. 147, do CTN); o terceiro, por sua vez, também chamado de autolançamento, é feito quando o contribuinte possui o dever de antecipar o pagamento do tributo que entende como devido, sem prévio exame da autoridade administrativa, que, ou o homologa expressamente(art. 150, §4º, do CTN), ou, diante de eventual discordância, efetua o lançamento de ofício da importância que deixou de ser recolhida pelo contribuinte.

O presente trabalho se dedicará a analisar o lançamento por homologação sobretudo sob a ótica das recentes inovações tecnológicas introduzidas, em âmbito federal, pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB), em relação aos tributos cujos fatos geradores são declarados ao Fisco através de informações prestadas pelo Sistema Público de Escrituração Digital – SPED.

Isso porque, como veremos a seguir, tem-se identificado, na prática, que referido sistema vem restringindo sobremaneira o legítimo direito de o contribuinte discordar da interpretação adotada pela RFB em relação a fatos geradores de obrigações tributárias escriturados em SPED.

Essa tendência impõe uma crescente subversão da essência do lançamento por homologação, transmutando-o para algo mais próximo de um lançamento por declaração, em que o Fisco define previamente como os tributos devem ser calculados e declarados, cerceando, desta feita, o direito do contribuinte à interpretação da legislação tributária de forma divergente àquela adotada pelas Autoridades Administrativas.

Para tanto, teceremos brevíssimas considerações sobre a modalidade de lançamento tributário por homologação, a problemática decorrente da modernização das plataformas de escrituração e declaração de obrigações tributárias e, finalmente, traremos algumas singelas sugestões objetivando compatibilizar a necessária eficiência na tributação com o instituto do lançamento por homologação.

O Lançamento por Homologação

O lançamento por homologação é fundamentado na ideia de que o contribuinte possui a faculdade de interpretar a legislação tributária, identificar os fatos geradores, calcular as alíquotas e os tributos devidos, e efetuar o pagamento.

“Lançamento por homologação. É a modalidade que se caracteriza pela determinação legal de que o próprio sujeito passivo verifique a ocorrência do fato gerador, calcule o montante devido e efetue o pagamento no prazo, cabendo ao sujeito ativo apenas a conferência da apuração e do pagamento já realizados.”[1]

A RFB, por sua vez, tem a competência de homologar ou questionar esses valores, mas a iniciativa de verificar a ocorrência do fato gerador e o cálculo do valor devido partem apenas do contribuinte. Até mesmo porque, conforme o magistério de Hugo de Brito Machado, “O objeto da homologação não é o pagamento, (…). É a apuração do montante devido, de sorte que é possível a homologação mesmo que não tenha havido o pagamento.”[2].

Esse modelo pressupõe uma relação de cooperação entre o Fisco e o contribuinte, reconhecendo que a legislação tributária pode ser objeto de diferentes interpretações, desde que amparadas pelos princípios legais e constitucionais.

A Subversão do Conceito na Prática

Atualmente, contudo, a RFB tem adotado uma postura cada vez mais restritiva, exigindo que os contribuintes declarem e recolham os tributos exatamente no modelo que o órgão entende como correto, contrariando frontalmente a previsão contida no art. 150, do CTN, de o contribuinte antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa. Essa limitação imposta pela RFB tem sido materializada por meio de sistemas informatizados (SPEDs) que não admitem flexibilizações ou interpretações divergentes por parte do contribuinte.

Um exemplo emblemático ocorre no âmbito das contribuições previdenciárias: o contribuinte pode livremente entender, com base em fundamentos jurídicos sólidos, que uma rubrica específica não deve integrar a base de cálculo da Contribuição ao RAT (Riscos Ambientais do Trabalho), podendo ser tributada exclusivamente pela Contribuição Patronal de 20%. No entanto, o SPED destinado à escrituração destas informações (Sistema de Escrituração Digital das Obrigações Fiscais, Previdenciárias e Trabalhistas – eSocial) não permite tal segregação, impondo um tratamento tributário único vinculante para dois tributos distintos.

Essa rigidez sistêmica cerceia o direito do contribuinte à discordância da interpretação da legislação tributária. O contribuinte, dessa forma, é obrigado a seguir à risca as determinações sistêmicas impostas pelo Fisco que, via de regra, não possuem sequer força de lei, mesmo quando sua própria interpretação é legítima e juridicamente justificável, além da mesma estar, como visto anteriormente, suscetível a críticas e correções pelos órgãos de fiscalização tributária.

Até mesmo porque, à luz da liberdade de não fazer o que a lei não impõe e de fazer o que a lei permite (art. 5º, inciso II, da CRFB/1988), é lícito ao contribuinte não adentrar na situação legal de tributação e, inclusive, decorre do direito de propriedade (art. 5º, inciso XXII, da CRFB/1988).ADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 29. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 177.

Situação legal de tributação e, inclusive, decorre do direito de propriedade (art. 5º, inciso XXII, da CRFB/1988).

Alternativas em Face dos Impedimentos Atuais

Uma solução justa e equilibrada para esse impasse consistiria em a RFB admitir a flexibilização de determinados campos nas respectivas declarações, permitindo que o contribuinte realizasse seu preenchimento “à mão livre”, sem estar vinculado a restrições sistêmicas impostas pelos SPEDs.

Essa flexibilização não significaria, necessariamente, que a RFB acataria, na íntegra, a declaração do contribuinte, mas sim que ela franquearia a ele a possibilidade de interpretar fatos tributários de maneira distinta daquela adotada pelas autoridades administrativas. Caso, no exercício de seu direito de fiscalizar, a RFB entendesse que o contribuinte errou em sua declaração, ela poderia lançar mão da revisão de ofício do lançamento por homologação para cobrar os tributos eventualmente não recolhidos (art. 149, do CTN), preservando, assim, o direito de defesa e o contraditório ao contribuinte.

Essa abordagem manteria o equilíbrio entre a autonomia do contribuinte, sem abrir mão da eficiência na fiscalização do Estado, resgatando a essência do lançamento por homologação.

Enquanto não se alcança o desejado equilíbrio, identifica-se como solução, ainda que paliativa, a RFB admitir que o contribuinte realize ajustes técnicos nas declarações para produzir o efeito tributário final desejado, sem que tais ajustes sejam considerados descumprimento de obrigações acessórias ou tentativa de simulação. Esses ajustes, embora não ideais, seriam uma forma de contornar as limitações impostas pelos sistemas atuais, sem que o contribuinte fosse penalizado com pesadas multas por buscar uma interpretação legítima da legislação.

É importante ressaltar que tais ajustes não representariam uma afronta ao sistema, mas sim uma adaptação necessária diante da rigidez excessiva dos modelos declaratórios atuais. A RFB, ao reconhecer essa realidade, poderia adotar uma postura mais pragmática, evitando a imposição de sanções desproporcionais em casos em que o contribuinte agiu de boa fé e com base em interpretações juridicamente defensáveis.

Diante dos obstáculos impostos pela rigidez dos sistemas de declaração, outra alternativa viável para o contribuinte consiste na propositura de medidas judiciais visando à possibilidade de realizar declarações de maneira distinta daquela que a RFB entende como correta. Essa via judicial poderia garantir o direito à interpretação divergente, desde que fundamentada em argumentos jurídicos sólidos.

Conclusão

A postura atual da RFB, ao restringir a autonomia do contribuinte e impor uma interpretação única por meio de sistemas rígidos de declaração, tem distorcido o conceito de lançamento por homologação, aproximando-o de um modelo de lançamento por declaração. Essa mudança não apenas aumenta a carga tributária suportada pelos contribuintes, mas também viola seu à interpretação divergente da legislação.

É imperativo que haja um debate amplo e qualificado sobre esse tema, envolvendo contribuintes, especialistas e o próprio Fisco, com o objetivo de buscar soluções que equilibrem a necessária eficiência da fiscalização estatal e a autonomia privada. A flexibilização de campos declaratórios, como proposta neste artigo, representa um caminho viável para resgatar a essência do lançamento por homologação e garantir um sistema tributário mais justo.

Enquanto isso, a judicialização de medidas e a possibilidade de ajustes técnicos nas declarações emergem como alternativas necessárias para contornar as limitações impostas pelos sistemas atuais, sem penalizar injustamente o contribuinte.

[1] PAULSEN, Leandro. Direito Tributário: Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 962-963.

[2] MACH[1] PAULSEN, Leandro. Direito Tributário: Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 962-963.

[2] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 29. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 177.

A equipe do BALERA está à disposição para auxiliá-los sobre esse tema.

Por:

Renato Tonini

Janeiro, 2025.

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