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Lei da Liberdade Econômica ajusta rota para aproximar o Poder Judiciário dos Investidores Institucionais

Pedro Henrique de Vasconcellos

Especialista em Direito Societário e Mercado de Capitais e sócio do Balera, Berbel & Mitne Advogados

A Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/19), sancionada em 20 de setembro a partir da MP 881/2019, traz medidas de diversos teores que visam a desburocratização e a simplificação de processos para empresas e empreendedores. Cabe destacar, contudo, os novos comandos que a Lei traz para os fundos de investimento, ao inserir os artigos 1.368-C a 1.368-F no Código Civil. É possível afirmar que um dos objetivos de tal inovação seja calibrar de forma mais precisa os parâmetros interpretativos que o Poder Judiciário costuma manifestar sobre o Mercado de Capitais, permitindo, assim, uma exitosa aproximação da esfera judicante com a realidade dos Investidores Institucionais – medida esta salutar se considerarmos o intuito do governo de promover uma agenda voltada ao crescimento econômico.

Sobre o ponto, vale destacar que alguns dos mais importantes Investidores Institucionais brasileiros – notadamente as Entidades Fechadas de Previdência Complementar (popularmente conhecidas como “Fundos de Pensão”) e os Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS) – possuem extensas e detalhadas diretrizes relativas a seus investimentos, a tratar, dentre outras, sobre a necessária limitação de responsabilidade quanto ao patrimônio que alocam. Isso porque, dada a sua finalidade previdenciária (seja ela social ou complementar), entendeu o Conselho Monetário Nacional – Órgão Regulador de ambas – que não lhes seria permitido investir em nenhuma espécie de estrutura que previsse a possibilidade de perdas superiores ao valor investido.

Não por outro motivo, não é permitido aos Fundos de Pensão e aos RPPS investirem em Fundos de Investimento “alavancados” – que são aqueles que, em mercado de derivativos, podem estar sujeitos a perdas superiores ao seu patrimônio (gerando, nesses casos, a necessidade de aportes de recursos adicionais para cobrir os prejuízos do Fundo). Tais vedações encontram-se expressas tanto no art. 23, I da Resolução CMN nº 3.922/10 (atinente aos RPPS) quanto no art. 36, VII, “b” da Resolução CMN nº 4.661/18 (alusiva aos Fundos de Pensão).

Sem embargo à salutar e protetiva diretriz do CMN acima indicada, fato é que, infelizmente, o Poder Judiciário (sobretudo no segmento da Justiça do Trabalho) historicamente tende a desprestigiar normas regulamentares, editadas por Reguladores do talante do CMN. Por uma série de motivações – que remontam desde a formação jurídica transmitida nas Faculdades de Direito até a própria gama de conhecimentos exigida de candidatos em concursos públicos da Magistratura –, nossos julgadores possuem um atuar enviesado para prestigiar o que a cátedra denomina “normas primárias” (em bom português, as leis) em detrimento das “normas infralegais” (isso é, resoluções, instruções normativas, etc).

Como bem pode depreender o leitor, semelhante prática, sempre que trazida para o Mercado de Capitais, acaba malogrando-o com riscos e inseguranças que os mencionados Investidores Institucionais (e seus Reguladores) nunca desejaram; afinal, considerando que o magistrado brasileiro médio não possui familiaridade com as Resoluções elaboradas pelo CMN e com as Instruções editadas pela CVM, sua compreensão do caso concreto – e, pior, sua decisão – frequentemente se vale de substratos principiológicos e/ou de analogia com normas do Direito brasileiro que, como cediço, não se amoldam perfeitamente às especificidades e complexidades ínsitas a esse ambiente regulatório.

Diante desse cenário, não raro se deparam Fundos de Pensão e/ou RPPS com decisões judiciais que determinam que, dada a sua qualidade de cotistas de determinado Fundo de Investimento, arquem eles com verbas trabalhistas, previdenciárias ou tributos de toda sorte que não estejam diretamente vinculados ao Fundo em si, mas sim a empresas investidas, emissores de papéis e/ou outros agentes de mercado. Certamente todos aqueles minimamente experimentados no cotidiano desses Investidores Institucionais possuem na memória um ou outro malfadado relato de alguma decisão judicial que subverteu a lógica regulatória e fez a sua Entidade suportar verbas ao arrepio da legislação aplicável ao tema.

Semelhantes situações, quando ocorrem, acabam fazendo com que os Investidores Institucionais e o Mercado de Capitais – duas verdadeiras “forças da natureza econômica”, que necessitam se encontrar para que o desenvolvimento do país se faça possível – sofram, de certa forma, uma espécie de “feitiço de Áquila” por parte de um Poder Judiciário conceitualmente mal aparamentado, que, com decisões desse escopo, os afastam, ao invés de aproximá-los. Aos menos versados na Sétima Arte, o filme “O feitiço de Áquila”, lançado nos anos 1980, apresenta a fábula de um apaixonado casal que é impedido de viver seu romance em virtude de uma curiosa e perversa maldição: durante o dia, a mulher se transforma em falcão, enquanto que o cavaleiro, à noite, se torna um lobo; desta forma, o contato entre ambos é cronologicamente impedido, ressalvados pequenos encontros no crepúsculo.

O efeito dessa “maldição”, no âmbito do Mercado de Capitais, é ainda pior: as pessoas físicas que compõem os Investidores Institucionais – sobretudo no caso dos Fundos de Pensão – tendem a quantificar essa má-interpretação judicial sobre a estrutura dos Fundos de Investimento como mais um risco a ser ponderado, o que, em última análise, desestimula o desenvolvimento do sistema previdenciário como um todo, com reflexos perniciosos na própria estruturação econômica nacional.

Nesse sentido, no que pertence ao Poder Judiciário (e, mais precisamente, à formação de seus magistrados), parece-nos um início de “quebra de feitiço” o fato de o Código Civil – lei por todos estudada e onipresente em editais de concursos públicos para o ingresso na magistratura –, passar a dispor, após a entrada em vigor da Lei da Liberdade Econômica, que Fundos de Investimento possuem a natureza de condomínio – o que lhes impede de sofrer qualquer incidente de desconsideração da personalidade jurídica (já que, afinal, não possuem qualquer “personalidade jurídica” para ser “desconsiderada”) – e que compete à CVM (e não ao Congresso Nacional) dispor sobre essa modalidade de investimento.

Mais ainda, com as alterações introduzidas pela Lei da Liberdade Econômica passa-se a permitir que o Regulamento do Fundo possa limitar a responsabilidade de cada investidor ao valor de suas cotas – o que, certamente, será adotado em diversos Fundos nos meses vindouros –, de forma que reste às escâncaras a impossibilidade de o Poder Judiciário lhe transferir o ônus de, por exemplo, arcar com dívidas trabalhistas de uma sociedade investida em uma estrutura de Fundo de Investimento em Participações (“FIP”) do qual seja cotista.

Isso não quer dizer, por óbvio, que cotistas, a partir de hoje, não arcarão mais com dívidas atinentes a obrigações legais ou contratuais assumidas pelos Fundos; não se trata disso, em absoluto, conforme muito bem dispõe o novel artigo 1.368-E. O que se aplica aqui é tão somente a impossibilidade de que que obrigações outras, que não aquelas assumidas diretamente pelo Fundo – como obrigações inadimplidas de uma sociedade investida, nos valendo do exemplo anterior – maculem, ao fim e ao cabo, as contribuições vertidas ao RPPS e/ou ao Fundo de Pensão. Intencionou o legislador pátrio, tal como disposto na exposição de motivos da (então) Medida Provisória nº 881/19 – ora Lei nº 13.784/19 –, facilitar a canalização de recursos poupados para a economia real, motivo pelo qual precisava aumentar a atratividade e a segurança jurídica dos Fundos de Investimento.

Sob a óptica dos Fundos de Pensão e dos RPPS, cremos que todo o aumento de segurança jurídica atinente a Fundos de Investimento é bem-vindo – em especial em um contexto em que o Poder Judiciário ainda engatinha em seus conhecimentos de mercado e cuja Taxa Selic, atualmente, perfaz históricos 5,5% a.a. É por mais “crepúsculos” como esse que o segmento dos RPPS e a indústria dos Fundos de Pensão esperam.